quinta-feira, 8 de abril de 2010

Hobbes

Para as aulas sobre Hobbes, leiam:
1. Leviatã, de Hobbes, com ênfase nos caps. 4, 5, 13, 14, 17, 21, 24 e 30, bem como a revisão e conclusão do livro;
2. Do cidadão, de Hobbes, ed. Martins Fontes, para uma argumentação mais apurada do que ele escreveu;
4. Transcrevo a introdução que escrevi à trad. brasileira do Behemoth:

Prefácio: A mídia do Dezessete

Renato Janine Ribeiro

I

Por que um filósofo como Hobbes, que passou boa parte da vida criticando as metáforas, figuras e imagens, e mais que isso, responsabilizando-as pela subversão e pela guerra civil, dá a duas de suas obras títulos que evocam monstros? À primeira vista, haveria maior sentido em utilizar, ele, títulos que fossem puramente denotativos, dos quais a alusão, o figurado, a imagem estivessem ausentes. Isso, aliás, ele fizera com total êxito no Do cidadão, em 1642, para citar apenas um livro. E a coisa é ainda mais curiosa porque os comentadores não encontram muita facilidade em decifrar o que ele quis dizer da política com os dois monstros. Do Leviat㸠é verdade que se chegou a um razoável consenso: Hobbes escolheu o monstro citado no Livro de Jó porque ele reina sobre os filhos do orgulho, e nós, humanos, somos antes de mais nada movidos por nossa vaidade, pela noção vã que temos de nosso valor; é esta, por sinal, a terceira causa da guerra generalizada entre os homens, da “guerra de todos contra todos” [1]. Contudo, por que enquanto um monstro bíblico designa o poder possível e necessário sobre os homens vãos, outro aponta a desagregação de todo o poder, em mãos do clero?

Não é clara a razão de se escolher o Behemoth bíblico [2], contra o igualmente vetero-testamentário Leviatã. Contudo, podemos sugerir pelo menos um esboço de resposta, que consiste no seguinte. Primeiro, Hobbes insinuaria que vivemos entre duas condições monstruosas, a da paz sob o governo absoluto (ou melhor, o governo de um soberano) e a da guerra generalizada, isto é, o conflito intestino, que lança irmão contra irmão. A guerra de todos contra todos é na verdade a guerra civil, pior do que qualquer outro conflito, porque na guerra externa pode haver uma produtividade, uma positividade: afinal, Hobbes é mercantilista, e para essa escola econômica a guerra estrangeira pode servir de excelente meio para se acumular um superávit em metais preciosos, tão bem ou mesmo melhor que o próprio comércio externo. (A guerra é a continuação do comércio por outros meios, já se disse a propósito do mercantilismo). No conflito doméstico, porém, não há produtividade, só destruição. Ele é a potência do negativo. Contudo, se a destituição de todo referencial constante, a universalização da desconfiança compõem uma condição monstruosa, a superação desta passa igualmente por uma monstruosidade, que é o poder pleno conferido a uma pessoa [3], o soberano. Há monstro no poder de Estado, antes de mais nada em sentido literal, por ser ele algo que salta aos olhos, prodígio ou coisa incrível, que se mostra de modo a nos impressionar; e também porque sobre sua ação paira um elemento incondicionado, imprevisto e imprevisível, que passa pelo temor mas pode converter-se em terror. Hobbes fala em fear e em awe, que não designam um medo desmedido, mas um respeito, uma reverência, um temor que têm sua razão de ser; seu soberano não é um déspota, um sultão que governa pelo pavor; mas o fato de ter escolhido, para representar esse poder, um monstro ajudou a fortuna crítica a pensar o poder pela desmedida, pela plenitude de mando transbordando por vezes a ponto mesmo de incutir o medo irrestrito.

Segundo, e indo mais precisamente para o livro de nome Behemoth: a guerra de todos contra todos não é apenas, como afirma Hobbes no Leviatã, uma condição em que não temos certeza de que o outro cumpra os pactos que firmou, e em que atacá-lo é portanto a melhor linha de ação a se seguir. O capítulo XIII do Leviatã descreve uma situação de guerra, como, antes dele, o cap. I do De Corpore Politico e o igualmente o I de Do cidadão, e aponta suas causas. Mas – curiosamente – é o Behemoth, livro de menor pretensão teórica, que vai mostrar com maior precisão como e por que se produz a condição de guerra: o clero é seu principal responsável. A guerra de todos não é uma simples hipótese a servir de contraponto – ou álibi – à paz instaurada pelo poder soberano. Ela é produzida, antes de mais nada, pela desmedida da palavra que finge deter as chaves de acesso à vida eterna. Se o poder do governante é forte, ele é, porém, um poder apenas laico, somente racional, se não for além do temporal e não controlar, também, o espiritual. Os diversos cleros, ao pretenderem um acesso próprio às coisas espirituais, impõem decisivo limite à autoridade do soberano. Por isso, este não pode ser laicizado, nos temos em que hoje conceberíamos. Ele precisa ser um poder temporal e espiritual, como, aliás, se lê no título completo do Leviatã, que é “Leviatã, ou a matéria, forma e poder de uma República Eclesiástica e Civil” (república, claro, num sentido que é mais o de Estado em geral, que o da forma eletiva de seus governantes; mas o que eu queria frisar era o papel religioso, tanto quanto temporal, desse Poder).

Ao contrário do que muito leitor de nosso tempo imagina, o poder mais forte não é necessariamente o da espada visível, o do gládio da justiça e da guerra, que o soberano (leigo) empunha – mas pode ser o de uma espada, digamos, invisível, a da fé e da religião. Se o governante que julga de maneira visível e aos olhos de todos pode infligir a morte física, o clero brande a ameaça da morte eterna, ao mesmo tempo que nos faz antever uma eternidade no paraíso, e esse misto de promessa e amedrontamento pode mostrar-se mais eficaz que o instrumental mais ou menos desencantado com o qual o poder leigo procura controlar as condutas. Dizendo em outras palavras: cita-se, em demasia, a frase que mais ou menos abre a parte II do Leviatã, ou seja, “Covenants without the Sword are but Words”, os pactos sem a espada não passam de palavras; a partir dela se entende que sem a força física, em mãos do soberano, a promessa de nada vale. Mas com isso se esquece que a palavra pode, conforme seja utilizada, deter uma força incomparavelmente maior. É essa palavra descontrolada sobre o Além, ou melhor, essa palavra controlada pelo clero, o grande perigo contra o qual Hobbes escreve, conforme argumentei em Ao leitor sem medo; e daí decorre a importância do Behemoth: aqui se percebe que a condição de guerra generalizada, o conflito doméstico, resulta acima de tudo das maquinações do clero.

E, terceiro, a desconfiança hobbesiana vale contra qualquer clero. É visível que Hobbes concentra seus ataques nos presbiterianos, mas – embora os católicos romanos então vivendo na Inglaterra fossem bastante fiéis ao rei Carlos, e portanto partilhassem a preferência pessoal do filósofo pela monarquia e pelos Stuarts – ele não os poupa em absoluto. Pior que isso: responsabiliza-os por constituírem o que podemos chamar a matriz do poder alternativo, do poder subversivo a que ele chama, na Parte IV do Leviatã, “o reino das trevas”. E da mesma forma a própria Igreja Anglicana, que em Carlos I terá seu primeiro – e quem sabe único, pelo menos em território inglês – mártir, jamais, tanto quanto eu lembre, recebe de sua parte palavras que possamos dizer ternas. Todo clero, isto é, toda categoria de pessoas que se especializa nas coisas espirituais, tende a reivindicar um acesso direto ao divino. Melhor seria que os próprios governantes ditos leigos exercessem igualmente, e em suas pessoas, um ministério religioso: ficaria claro que todo o poder está unido. Evitar-se-ia a divisão do poder, que acaba propiciando uma contradição interna, altamente perigosa.

Com isso, o que pretendi firmar é um ponto, aquele para o qual o Behemoth decididamente contribui: a guerra de todos contra todos não é simples desordem, não é mera carência de ordem. Ela é produzida pela existência, no interior do Estado, de um partido. O conflito intestino não resulta da falência do Estado. Não é efeito de uma falha ou falta. Ele é conseqüência da ação de um contra-poder, que se move nas sombras, e que é o de um clero desobediente. (Mas todo clero tende a ser desobediente).

***

O problema de muitas leituras de Hobbes reside em seu anacronismo: projetam, no filósofo, problemas que não foram os seus, que dificilmente seriam os seus. É o caso da discussão, em certo tempo tão comum, sobre o caráter burguês ou não de nosso autor. Não que fosse, esse debate, impertinente; apenas, conferia importância demasiada a um aspecto de seu pensamento do qual é possível que o próprio filósofo tivesse bem pouca noção. Seu problema crucial, na relação com os atores políticos e sociais de seu tempo, não estava nos capitalistas, mas nos eclesiásticos. O clero, e não o capital, eis o grande ator contra o qual trabalha Hobbes. Identificá-lo é necessário, e para tanto devemos evitar o anacronismo.

Mas nem todo anacronismo é descabido. Certas pontes que lançamos entre os tempos podem ser úteis. Arrisquemo-nos a uma: o clero, no século XVII, é uma mídia de nosso tempo que teria anexado o Além. Imaginemos – talvez não seja preciso esforço excessivo para tanto – uma rede de comunicações de massas que, para completar seu poder, tenha condições de prometer, a seus ouvintes, a salvação, e de ameaçar os desatentos com a morte eterna. Esse duplo papel é o da mídia do Dezessete, o clero: por um lado assegura as comunicações, informando, pregando; por outro, sanciona com os melhores prêmios e os piores castigos quem se mostre refratário ao que ele quer transmitir e domesticar. Assim, somam-se um princípio de aparente descontrole – a circulação desenfreada dos signos, seu movimento escapando à marcação original que lhes garantiria a tutela, o respeito à ordem – e um modo fortíssimo de controle, que é a referência ao divino, o acesso monopolizado ao transcendente, a chave do absoluto sob a forma da dor eterna ou da satisfação igualmente eterna. O segredo do sucesso eclesiástico está aí, nessa soma de subversão e de poder.

Daí que seja a guerra civil o verdadeiro estado de natureza, a genuína ameaça a todos nós, ou pelo menos aquilo contra que Hobbes escreve. Devemos ler o capítulo XIII do Leviatã – essa passagem-chave do anti-aristotelicismo hobbesiano, de sua negação de uma sociabilidade natural, de sua ruptura com nosso espontâneo senso comum que nos faz crer na bondade humana (embora tranquemos a chave nossas casas e nossas economias) – como cifrando esse misto de ordem e de desordem clerical. O verdadeiro problema não estaria na violência privada, de indivíduo contra indivíduo. Essa é, quando muito, um resultado. Sua causa efetiva é a ambição clerical de poder. Em outras palavras, só o clero é capaz de mandar em meio à desordem. Mas é essa ordem escondida o que Hobbes não quer, aquilo em que ele vê a principal ameaça à paz entre os homens. Contra uma ordem que se oculta sob uma aparente desordem, e que por isso mesmo – ao ver de nosso filósofo – engendra e reproduz a desordem, quer Hobbes uma ordem clara, explícita, em um só nível, o da visibilidade. Somente o clero pode ter sua ordem em meio ao que o leigo chamaria desordem. Apenas a profissão eclesiástica está, em meio ao caos, como peixe n’água; apenas ela tem sua ordem devido à desordem. E por isso Hobbes precisa, não podendo laicizar de vez o poder – o que seria anacrônico, reconheço, mas sobretudo ineficaz –, submeter-lhe o espiritual. Seu soberano será, a um tempo, temporal e espiritual: veja-se a capa do Leviatã, com o rei segurando numa mão a espada e, na outra, o báculo. Atacar o clero, desmontar-lhe as pretensões é essencial se queremos a paz.

***

Combater o clero dá-se em duas chaves essenciais. Primeiro, é preciso atacar o clero visível, o causador imediato da desordem: o presbiteriano. Hobbes bem poderia voltar o gume de sua crítica contra os independentes, os sectários dos mais variados: mas estes, embora radicais, nunca detiveram muito poder. É importante notar que nosso autor é mais hostil, não aos radicais nem mesmo aos regicidas em especial, mas justamente ao grupo, digamos, “moderado” na Revolução, que perde o poder já por ocasião do julgamento e execução de Carlos I – ou seja, os presbiterianos. A crítica de Hobbes não prioriza os extremistas, ou os republicanos, mas justamente aqueles que funcionaram como um esboço de “partido da ordem” revolucionário. Foram eles que deflagraram um processo de desobediência que traria todo o mais como seu efeito. Eis a questão, pois: não condenar o radicalismo aparente, porém buscar sua causa. Essa é presbiteriana.

Mas Hobbes vai adiante. Se ainda faz sentido dizer que os presbiterianos foram quem deflagrou um processo que, depois, escapou a seu controle – e se tem pois cabimento responsabilizá–los pelo que depois sucedeu –, nosso autor rompe com qualquer senso comum ao culpar os católicos, em última análise, pelo próprio procedimento presbiteriano. Porque, afinal, faz nexo chamar os sectários e radicais de filhotes dos presbiterianos; mas causa enorme estranheza chamar estes de prole dos papistas. E, com efeito, Hobbes não diz isso com todas as palavras, mas é essa a idéia-mestra sua, já presente nas duas últimas partes do Leviatã: a Igreja Romana é responsável pela oposição, ao legítimo poder soberano, de um poder alternativo, que requer a obediência de todos a seus preceitos sob pena da morte eterna. É essa a matriz que monta todo discurso religioso que se pretenda independente do poder legal.

Com isso, Hobbes se afasta de tudo o que passaria por óbvio. Uma leitura da Revolução Inglesa colocaria os católicos e anglicanos do lado do Rei, os presbiterianos e radicais contra ele e a favor da República. As simpatias de Hobbes, é mais que sabido, estavam com Carlos I. No entanto, de todos esses quatro grupos religiosos um dos menos atacados pelo filósofo será justamente o último, por certo acaso o dos regicidas, enquanto sua ira se dividirá, de forma quase igual, entre papistas e presbiterianos. Nesse livro, aliás, quase todo o tiroteio se dirige contra os presbiterianos, mas no Leviatã a guerra se fazia à Igreja Romana, de modo que as coisas se equilibram. Não há contradição entre os dois livros, neste ponto preciso: Roma fornece o modelo, o presbitério efetua sua aplicação escocesa e inglesa. Os anglicanos, embora monarquistas por definição, têm o risco de todo clero, isto é, sua tendência a se emancipar da necessária união do poder espiritual ao temporal; os radicais, apesar de tudo o que Hobbes desaprova, não foram quem causou os distúrbios – e até se poderia dizer que Hobbes aprovasse, muito mau grado seu, certas medidas de Cromwell, afinal de contas um “independente” em matéria religiosa: a união da Escócia à Inglaterra, a repressão ao papismo irlandês, as guerras mercantilistas contra os Países Baixos, o começo do império colonial pela ocupação da Jamaica, em suma, uma visão mais laica do Poder, ou pelo menos uma maior preponderância do gládio sobre o clero organizado do que se veria quer entre os católicos, quer junto aos anglicanos de Carlos I, quer sob os presbiterianos. O grande problema hobbesiano não é, pois, o da divisão usual que se faz entre dois partidos na Guerra Civil, realistas e parlamentares, nem mesmo entre três, se a esses acrescentarmos, como quer com razão Christopher Hill, os radicais. O ponto que ele afirma e em que insiste é o de pôr fim à tutela dos profissionais da religião sobre os governantes e os cidadãos.

II

Outro ponto que merece atenção nesse livro é que se trata de um diálogo. Mas que estranho diálogo, se lembramos algo do criador da forma, Platão. No começo grego desse gênero, temos pessoas, com nome e biografia pelo menos esboçada, que conversam e, à medida que prossegue sua troca de idéias e de palavras, mudam de opinião e até mesmo crescem: o diálogo platônico é fortemente ascensional. Aqui, porém, só vemos duas personagens, de cuja vida nada sabemos e cujos nomes se reduzem ao basal, ao mínimo, a A e B, num grau zero da personalização. Talvez, pois, nem personagens sejam: apenas, posições. Podemos, do contexto, inferir que um é mais velho e presenciou os acontecimentos que relata, ao passo que outro é, a compensar sua juventude, mais inteligente, já que coloca para o primeiro, senhor dos fatos, questões teóricas. De suas respectivas identidades não se pode supor muito mais que isso. E, se no diálogo grego episódios do cotidiano se sucediam, bem como menções ao aqui e agora que localizavam e datavam a fala, aqui nada há além de política. Do ponto de vista literário, pois, temos um texto sem muito gume, ou pelo menos um diálogo cuja qualidade não resiste, enquanto forma de escrita, ao cotejo com Platão.

Isso não significa, porém, desqualificar o trabalho de Hobbes. Argumentei em outro lugar [4] que, na sua distinção entre dois usos da linguagem, pertence à marca tudo o que diz respeito à produção da ciência, e ao signo o que se refere à circulação de idéias ou palavras. Ora, isso faz que a ciência se realize por completo na solidão do cientista, e que comunicar seus resultados, ou mesmo seus procedimentos, sempre implique, pelo menos, a perda da qualidade científica – já que se descobre no registro da marca, e se transmite no do signo. É por isso que a troca de idéias não pode constituir novas idéias, pelo menos de teor científico. Podemos ter a transmissão de um corpus científico, mas este só torna a ser científico quando o ouvinte reelaborar – como marca – tudo o que aprendeu de seu professor. Assim, o encontro de A e B é quando muito uma transmissão de fatos que se depara com uma teoria mais ou menos pronta, e que se aplica àqueles fatos. Não é, nem poderia ser, uma discussão que gerasse novas teorias. Daí, sem dúvida, o caráter um tanto empertigado do diálogo, ao qual falta vivacidade. Como poderia haver vida, criação do novo, quando só dispomos de duas séries separadas de pensamento e discurso, entre as quais o contato é sempre estanque, externo? Talvez também isso indique o modo como o autor parece ir-se cansando de sua própria obra, já que à medida que escreve o livro vai ficando mais “burocrático”: nos dois últimos diálogos, Hobbes não hesita mais em enumerar fatos, até mesmo dando-lhes números de ordem, ou em arrolar acontecimentos um após o outro, como se se estivesse estancando o espírito de inquietação que precisa estar presente em toda obra filosófica original.

III

Mas isso não quer dizer que o Behemoth não mereça ser lido. Apontar-lhe os problemas, e tentar explicar a que se devem, é o mínimo que de nós exige a honestidade intelectual. Nada disso, porém, nega suas qualidades, que são notáveis. É um livro que permite confrontar a prática, isto é, a guerra civil, com a teoria, expressa em obras anteriores de teor mais genérico. Só esse cotejo já é fonte de inúmeras indagações, presentes na bibliografia, como por exemplo no mestrado que tive o prazer de orientar de Eunice Ostrensky, a tradutora deste livro, e que entre outras coisas procura dar conta das aparentes – e por vezes reais – contradições entre o Behemoth e as obras teóricas [5]. Além disso, como Hobbes mal começa a ser trabalhado, uma vez que nos últimos vinte anos tivemos a seu respeito mais livros significativos do que em qualquer período de tempo comparável dos três séculos precedentes, os diálogos sobre a guerra civil constituem um excelente desafio para quem pretenda aprofundar-se no filósofo.

Apenas um ponto, dessas diferenças, eu gostaria de apontar antes de passar a palavra ao autor: é que, enquanto o Leviatã aceita e acata o poder, que parece consolidado, de Cromwell, o Behemoth dá a entender que, se a República não se manteve na Inglaterra, isso se deveria ao fato de nunca se ter consolidado (porque nunca poderia consolidar-se) o Estado cromwelliano. Talvez seja essa a principal, ou pelo menos a mais visível, diferença entre as duas obras. Com efeito, o Leviatã até usa, para designar o Estado, o termo que Cromwell empregou para o seu regime, “Commonwealth” – literalmente “bem comum”, ou “coisa pública”, isto é, República. Esse termo na época possuía dois sentidos principais, um ampliado – toda e qualquer forma de governo, mesmo monárquica, enquanto visasse ao bem comum –, outro mais restrito – aquela forma de governo na qual os dirigentes são eleitos. É óbvio que Cromwell e os holandeses destacam o segundo sentido, e Hobbes, o primeiro. Mas são evidentes as conotações, quase pró-cromwellianas, da escolha terminológica de Hobbes.

Mais que isso: nosso autor publica o Leviatã ainda exilado no continente, e logo, percebendo que assim suscitara o ódio dos monarquistas que lá se haviam refugiado, volta à Inglaterra e se submete ao novo governo. E é claro que a ira monárquica contra ele se deve principalmente a duas passagens, uma no cap. XXI, outra na “Revisão e Conclusão” (e que será suprimida na tradução latina posterior à restauração da monarquia), em que justifica um poder alcançado mediante a conquista e que tenha consolidado sua regra, assegurando a ordem entre os súditos. Há lógica nisso: se o poder se explica, não como dádiva divina, mas como construção para preservar a vida dos cidadãos, sua prova dos nove está no modo como atenda a essa finalidade tão terrena, e não na obediência a um misterioso mandado de Deus. E essa idéia-chave, que vem do contratualismo, Hobbes não pode mudar nem jamais mudará: se o fizesse, deixaria de ser Hobbes.

Contudo, o fato é que, após a morte de Cromwell, seu poder se esboroa. Os Stuarts voltam ao trono. Tudo indica que Hobbes tenha gostado do desfecho, embora provavelmente tenha temido, no curso do processo, a desordem (e aí, sim, os radicais tentaram desempenhar um papel que nosso filósofo não apreciava em absoluto!). Hobbes precisa dar conta do seu erro de previsão, por assim dizer. E ele o faz alterando o menos que pode sua convicção anterior. Em outras palavras, não abre mão da idéia de que o governante deve seu poder a interesses e vontades muito humanos. Embora insinue, vez por outra, uma saudação ao direito divino ou à legitimidade dinástica, seu problema continua sendo a paz. Isto é, em última análise, muda sua leitura de Cromwell: não é que ele fosse um usurpador, e por conseguinte ilegítimo. O problema crucial e principal é que ele não conseguiu consolidar seu poder. A impressão, válida em 1649 ou 1651, de que a República iria perdurar foi desmentida pelos fatos. E é possível que, se não conseguiu consolidar-se, fosse mesmo porque é muito difícil um poder novo adquirir a mesma qualidade daquele que tem, em seu favor, a longa duração no tempo. Continua, pois, valendo o poder por sua finalidade neste mundo – trazer-nos a paz – e não sua suposta e legitimista meta no outro mundo: proporcionar-nos a salvação eterna. Somente, um Estado novo parece menos apto a trazer a paz do que aquele que já tem a opinião de todos em favor de seus direitos e costumes. O que significa, para concluir, que aqui Hobbes parece dar uma resposta a Maquiavel, cujo Príncipe, em última análise, trata sobretudo disso: como pode um príncipe novo, que tenha conseguido o poder pelas armas alheias, e portanto não conta em seu favor nem com exércitos próprios, nem com a opinião reiterada ao longo das gerações, conseguir criar uma tal opinião, uma tal obediência? O que Hobbes poderia responder é que tal resultado é muito difícil – e mesmo quando o novo governante, no caso de Cromwell, conta com um ótimo exército. A opinião não muda tão facilmente. Ou, por outra: é relativamente fácil subverter um governo, os presbiterianos que o digam. Mas substituí-lo por um novo é muito difícil: que o digam Cromwell – ou os mesmos presbiterianos.

Sete Praias, outubro de 1999.



[1] Sobre a terceira causa de guerra, ver, no Leviatã, o cap. XIII. Ver também a capa da edição original de 1651, sistematicamente reproduzida – provavelmente a imagem mais conhecida da filosofia política, e que aparece em inúmeros livros de ciência política -, na qual, sobre o rei que empunha espada e báculo, aparece a referência ao livro de Jó , que celebra o Leviatã como um poder ao qual nenhum se compara, neste mundo (cap. 41, versículo 25). A respeito da honra ou glória como causa de guerra, e de sua importância, ver THOMAS, Keith, “The social origins of Hobbes’s political thought”, in BROWN, K. (org), Hobbes Studies, Oxford, Blackwell, 1965e RIBEIRO, Renato Janine, Ao leitor sem medo – Hobbes escrevendo contra o seu tempo, Belo Horizonte, Editora UFMG, 1999. Finalmente, a explicação do título do Leviatã pode ler-se em MANENT, Pierre, Naissances de la politique moderne.

[2] Enquanto o Leviatã é um dragão ou serpente, o Behemoth é na Bíblia um hipopótamo. Ver Jó, cap. 40, vv. 15-24. É importante notar que o texto bíblico não fornece elementos suficientes para valorar positivamente um dos monstros (no caso, o Leviatã hobbesiano, que é o poder de Estado, pacificador) e negativamente o outro (o Behemoth de Hobbes, que é a guerra civil).

[3] Pessoa é um conceito jurídico, que não se refere necessariamente a um indivíduo. No caso de Hobbes, pode ser uma assembléia – e nesse caso o Estado será democrático ou aristocrático, não monárquico. Lembremos que as pessoas são com freqüência fictae, fictícias.

[4] A Marca do Leviatã, cap. II. No cap. IV desse livro, trato, em especial, da revolução em Hobbes.

[5] OSTRENSKY, Eunice. A obra política de Hobbes na Revolução Inglesa de 1640. São Paulo, mestrado defendido em 1997, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

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