quinta-feira, 11 de março de 2010

É possivel uma utopia pós-moderna?

Referência bibliográfica completa: RIBEIRO, R. J. . Pode existir uma utopia pós-moderna?. In: Juremir Machado da Silva. (Org.). Metamorfoses da cultura contemporânea. 1 ed. Porto Alegre: Sulina, 2006, v. , p. 146-158.

Pode existir uma utopia pós-moderna?

RENATO JANINE RIBEIRO

Proponho aqui um problema. Usualmente, quando se menciona a pós-modernidade, ela é pensada às antípodas de um pensamento utópico. Há uma forte crítica da esquerda, ou pelo menos de parte da esquerda, à pós-modernidade. Ora, aqui procurarei expor a possibilidade de pensar uma relação entre pós-modernidade e esquerda na qual não haja oposição e, mais que isso, na qual se abra a possibilidade de uma utopia pós-moderna. Evidentemente, isso dependerá de como definimos o pós-moderno. Vamos abrir a questão tratando do modo como principia a modernidade do ponto de vista político.

Há duas aberturas para a modernidade no começo do século XVI, praticamente simultâneas e antagônicas. Uma é a que Thomas Morus faz na Inglaterra, quando escreve sua Utopia, e outra se dá com Maquiavel, em Florença, escrevendo O Príncipe. Eles escrevem praticamente ao mesmo tempo, sem um saber da obra do outro. Morus toma conhecimento, mais tarde, da existência de O Príncipe e, no final da década de 1520, faz-lhe pelo menos uma referência crítica, condenatória, a esse livro que é visto pela grande maioria das pessoas como uma apologia do mal e uma defesa da tese de que os fins justificariam os meios. Quem lê "tecnicamente" filosofia não concorda com essa leitura, ou pelo menos quem trabalhou com filosofia nos últimos anos, desde que em meados do século XX mudou a abordagem a Maquiavel [1], não a compartilha; mas é essa a leitura d’O Príncipe que prevaleceu desde Thomas Morus.

Temos assim uma situação curiosa: dois autores que se ignoram, que sustentam teses opostas e que, ambos, rompem decisivamente com a Idade Média. São duas aberturas absolutamente importantes para a modernidade, duas formas diferentes e antagônicas de acabar com a Idade Média [2].

Mas há mais alguns importantes pontos de coincidência. Primeiro, esses dois livros são de facílima compreensão. Quem tenha lido um livro de filosofia escrito depois de 1650 pode ver que tanto a Utopia quanto O Príncipe não colocam problema imediato algum de compreensão, se comparados a Descartes, Kant, Hegel ou Heidegger. A Utopia é um livro que se lê sem maior dificuldade. O problema é que, ainda hoje, não se sabe o que Morus quis dizer nessa obra tão dissonante de suas outras. E a mesmíssima coisa vale para O Príncipe.

Muitos leitores e mais ainda não-leitores pensam que O Príncipe é uma apologia do mal; uma leitura, página a página, parece confirmar essa interpretação, mas ela parece cada vez mais equivocada. A Utopia talvez seja ainda mais fácil de entender: aparentemente, pelo menos, Morus nela defende o fim da propriedade privada, o planejamento social, em suma, uma sociedade justa porque não terá a propriedade individual. Mas há dúvidas sérias quanto a essa interpretação, a começar pelos nomes inspirados no grego, desde “utopia” (lugar nenhum), o rio Anidro (isto é, “sem água”) e o narrador da viagem a Utopia, Rafael Hitlodeu, cujo nome significa “autor de disparates”. Uma questão relevante é, então, por que há tanta dúvida sobre o que quiseram dizer esses dois livros? Porque eles constituem exceção na obra de seus respectivos autores.

Maquiavel, afora O Príncipe, só escreveu obras mais propriamente republicanas. Temos um defensor da República de Florença, que – após a queda do regime, derrubado pelos exércitos espanhóis que restauram o duque – passa algumas semanas ou poucos meses no campo, escrevendo um livro que é uma aparente apologia do príncipe. É um tempo breve, em meio a longos anos durante os quais se dedica à redação dos Discursos, estes sim uma obra claramente republicana. O Príncipe parece um interlúdio, um intervalo. Isso é o que levou certos autores, entre eles Rousseau, a pensar que talvez O Príncipe fosse uma paródia, uma crítica aos príncipes, expondo como eles agem para, assim, denunciá-los ao mundo. Quanto a Morus, canonizado no século XX pela Igreja Católica, por ter sido mártir da Reforma Protestante na Inglaterra, seus demais livros não contêm maiores críticas ao regime político inglês ou ao predomínio da grande propriedade. É importante assim frisar o caráter excepcional dessas duas grandes obras fundadoras da modernidade, talvez até fugindo por um momento da questão da modernidade em si mesma, para mostrar que o nascimento da modernidade, em política, é misterioso.

Há um mistério nesses dois autores de inicial "M", escrevendo ao mesmo tempo obras tão fáceis de ler, tão difíceis de entender. A filosofia ainda não tinha voltado a ser universitária, o que ela foi em parte da Idade Média e a partir dos séculos XVII e XVIII. Toda a vez, ao longo de seus 2500 anos, em que a filosofia fez parte da universidade, ela foi difícil de entender. Sempre que esteve fora de seus muros, foi mais compreensível. Há assim uma diferença entre a filosofia que se dirige aos acadêmicos e a que se dirige aos cidadãos, como na Grécia, ou aos homens cultos, como na Renascença. Comparem-se os pré-socráticos aos escolásticos, ou um Nietzsche, que deixa a academia, a um Hegel, que bem exprime o espírito desta última. Pois, com Maquiavel e Morus, temos um começo moderno aparentemente claro, mas mesmo assim problemático. Fica formulada a pergunta: por que a modernidade – que ainda, em certa medida, é o boot que damos diariamente em nosso computador mais pessoal (nossa cabeça) – parece tão límpida e é na verdade tão opaca, já desde que nasce?

***

Morus cunha o nome de Utopia. O que caracteriza esta última? Por ora, nos confinemos a três pontos básicos: primeiro, uma teoria determina a prática. Um princípio teórico pode ser encontrado, que servirá de grande explicação para todas as mazelas do mundo. Esse princípio teórico reza que a propriedade privada constitui causa suficiente e necessária do roubo, do crime, da miséria e infelicidade pessoal e social. Portanto, para se suprimir tudo isso deve-se abolir a propriedade privada. Isso significa termos um princípio do qual se deduz – e ao qual se reduz – todo o restante, um princípio teórico que governa tudo o que diz respeito à prática.

O segundo ponto é que a instauração da boa sociedade se dará mediante um planejamento, que é conseqüência lógica daquele princípio teórico. Se a propriedade privada é causa de todos os males, o fim da propriedade privada deverá tornar o mundo feliz. Mas o interessante – e eis nosso terceiro ponto – é que este planejamento geral da sociedade venha junto com um planejamento geral da cidade. A cidade não é mais a polis. Ela é o espaço urbano em que nos movemos e que precisa ser construído de modo que todos possamos ser justos e tratados com justiça. Daí que toda utopia, nestes 500 anos, tenha andado junto com um projeto de urbanização. É impossível ter uma utopia sem uma idéia de como a cidade se organiza. É difícil planejar uma cidade e resistir à tentação de formular um projeto de sociedade. Mais que isso, se Severo Sarduy tem razão quando afirma, em Escritos sobre un cuerpo, que a cidade passa a ser mapeada, cartografada, quando – durante a Renascença – deixa de ser imediatamente visível em sua inteireza, quando escapa ao olhar direto, então o ato de cartografar a cidade é simultâneo ao de planejá-la. A planta e a Utopia nascem quase ao mesmo tempo.

Eu, pessoalmente, enquanto preparava esta palestra, pensei no fato de ter nascido numa cidade planejada, que é Araçatuba – fundada há quase um século no interior paulista, quase na divisa com Mato Grosso, hoje do Sul – e de que, atualmente, passo parte significativa do meu tempo na grande utopia do século XX que é Brasília. É conhecida a oposição que, em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque tece entre as cidades da América hispânica e as da América portuguesa. As cidades hispano-americanas são como tabuleiros de xadrez: planejadas, com ruas perpendiculares. Já as cidades brasileiras são semeadas nas montanhas e nos vales – semeadas seguindo ritmos naturais, que não são os das linhas retas, paralelas e perpendiculares. Pois o Brasil central tem uma presença maior das retas e perpendiculares, ou do planejamento urbano por vezes vinculado a um projeto de nova sociedade. É o caso da cidade em que nasci e de várias outras do Brasil Central. também Seria interessante estudar como e por que o antigo Estado de Goiás foi capaz de gerar três capitais, que correspondem a três momentos diferentes do planejamento urbano e, mais que isso, da visão política da vida social.

A primeira delas é Goiânia, fundada em 1933. É uma cidade moderna, planejada, mas não é utópica. A segunda é a capital do país. Recortada do Estado de Goiás para constituir o Distrito Federal e construída ao longo da segunda metade da década de 1950, Brasília é uma cidade utópica. Desde o seu projeto inicial, pretendeu-se efetuar uma mudança nas relações entre as pessoas que lá fossem viver; isso se tentou com dificuldade e com fracassos (como já se constata em declarações de Niemeyer a Simone de Beauvoir, em 1961, pouco depois de inaugurada a nova capital [3]), mas de qualquer forma houve, em Brasília, um projeto utópico. Já a terceira capital retirada do antigo território goiano é Palmas, capital de Tocantins, fundada em 1989 e que não tem nada de utópico em sua concepção. Há planejamento, mas a utopia sumiu. Sessenta anos de história do centro do Brasil assim, como se fossem uma metáfora da história brasileira do século XX, marcam – com a criação de três capitais novas – o nascimento e a morte da utopia.

Ou seja, tivemos em nosso país, há menos de meio século, um forte projeto utópico, que rapidamente feneceu. Interessa frisar este ponto. A palavra utopia é fortemente polissêmica. Salientamos acima três de seus aspectos: o princípio teórico para a resolução dos males do mundo, o planejamento, a urbanização. Mas a utopia não se esgota neles. Ela pode ser sinônimo de irrealismo – e, sendo-o, pode ser entendida tanto como algo positivo (o sonho, o impossível) quanto como algo negativo (o impossível, o devaneio). Pode ser o que nos leva a romper com o convencional, impelindo-nos à ação, e pode ser o que nos impede de agir, prendendo-nos ao imaginário.

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Esta é a hora de sugerir o que possa ser uma utopia pós-moderna. Talvez ela seja irrealista, e certamente rompe com o existente: nestes dois sentidos, é utópica. Reorganiza a vida social: mais um sentido em que é utópica. Terá seus aspectos modernos e pós-modernos, e procuraremos distingui-los.

Partimos de uma constatação. Até 1989, quando se falava em tempo de trabalho, era com a idéia de reduzir as horas de trabalho por semana. Essa foi uma grande questão social. No século XIX, as horas de trabalho nas cidades tinham chegado a 12, 14, 16 por dia. Isso levou a uma série de lutas de trabalhadores, que conseguiram gradualmente reduzir o tempo de trabalho, até este se estabilizar em 8 horas diárias. Daí não se avançou. Desde mais ou menos a década de 1920, não houve maiores mudanças nessa fórmula. O único país em que se teve uma proposta de redução maior e conseqüente foi a França, após a vitória de Mitterrand em 1981, que pretendia chegar a 35 horas semanais mas parou bem antes disso. Ora, não há racionalidade nisso. Se temos ganhos de produtividade pela automação, como se dizia, e pela informatização, como hoje dizemos, por que não transferir uma parte desses ganhos de produtividade para os trabalhadores? Aparentemente, esses ganhos beneficiaram os patrões, os consumidores e só em terceiro lugar os trabalhadores. Mas, se um trabalhador agora faz em uma hora o que antes fazia em duas, por que precisará trabalhar duas horas?

O interessante é que, por volta de 1989 e 1990, some da discussão pública a idéia de redução das horas de trabalho e entra a de aumento dos anos de trabalho ao longo da vida. É esse o discurso dominante dos últimos 15 anos, que se sustenta muito bem porque argumenta em termos da estabilidade atuarial da previdência social. Dado que vivemos mais, já não tem sentido as pessoas se aposentarem em torno de 50 ou 60 anos, uma vez que elas ainda terão, de vida, várias décadas. Há muita lógica, sim, neste discurso: contabilmente, não há como sustentar uma pessoa por 50 anos se ela trabalhou menos do que esse meio século.

Não é esse o problema. O problema é que esse discurso dos anos a mais de trabalho tenha vindo a prevalecer sem, jamais, contestar o das horas a menos de trabalho. O segundo discurso não entrou em cena provando, ou sequer alegando, que houvesse um erro no primeiro discurso. Evidentemente, se um discurso lida com horas por semana, e o outro com anos por vida, pode-se chegar a termos mais ou menos comparáveis, a equivalentes que permitam uma discussão. Mas esta não ocorreu. O discurso atuarial da extensão dos anos de trabalho surgiu fingindo que nunca existira uma proposta de automação e de redução das horas de serviço. Evidentemente, essa troca de discurso – de um não dominante, mas mesmo assim forte, por um dominante, que elimina até os vestígios do primeiro – foi um dos sinais da derrota mundial das esquerdas que, infelizmente, veio no bojo da queda das ditaduras comunistas.

Por isso mesmo, cabe perguntar se não valeria a pena recuperar a pergunta pela redução da jornada de trabalho. Usarei duas referências a respeito. A primeira é do agrônomo francês René Dumont, que foi talvez o primeiro candidato político importante a abraçar a causa ecologista. Era socialista, tinha estado em Cuba, onde apoiou a revolução, mas foi um dos primeiros a publicar uma crítica severa ao regime de Castro, em seu livro Cuba é Socialista?, de 1970. Em 1974, lançou-se candidato a presidente da França contra Giscard d’Estaing, que venceu as eleições pela direita, e contra Mitterrand, que as perdeu como candidato de esquerda. A tese de Dumont era, sucintamente, que, se os franceses aceitassem, em 1974, um nível de vida equivalente ao que tinham em 1940 – um recuo de 34 anos ou menos, porque nesses 34 anos, houve cinco da Segunda Guerra Mundial, mais os necessários para a reconstrução do País – digamos então, um recuo talvez de vinte anos – se aceitassem um nível de vida menos bom do que o da época, mas ainda assim um nível satisfatório, conveniente, poderiam, dizia Dumont, trabalhar 3 dias por semana, 6 horas por dia, dos 25 aos 40 anos. Com isso, quitariam sua dívida com a sociedade com apenas cerca de um quinto do que se trabalhava na época. Em vez de 40 anos de trabalho, a oito horas diárias e cinco dias semanais (isto é, 76.300 horas, já deduzido um mês de férias por ano), teríamos um total inferior a 13 mil horas, respeitadas as férias.

A segunda observação eu tive discutindo com um empresário, Ricardo Semler, a quem expus justamente estas idéias. Ele, apesar de um ceticismo inicial, comentou que uma das questões sérias na empresa é que, com freqüência, as pessoas trabalham muito quando são jovens e teriam condições físicas para desfrutar de mais lazer, ao passo que, ao se aposentarem e disporem de maior tempo de lazer, sentem-se descartadas da vida produtiva. Diz ele que procurou resolver as duas questões, simultaneamente, fazendo uma espécie de compra ou venda de um dia por semana. Assim, se uma pessoa trabalhar quatro dias na semana durante a sua vida mais produtiva, ela ficaria devendo um dia por semana depois de aposentada (ou “compraria” esse dia enquanto trabalhasse, para mais tarde “revendê-lo” à empresa). Depois da aposentadoria, ela viria uma vez por semana à empresa, transmitir sua experiência.

Isso significa, de imediato, durante a vida propriamente ativa, um terceiro dia de folga por semana. O trabalhador iria quatro dias ao serviço e folgaria três, assim ampliando o seu lazer. Mas o mais interessante é a conta que Semler mencionou, em termos de produtividade. Segundo ele, trabalhando quatro dias por semana, ou seja, 80% do tempo do trabalho anterior, as pessoas garantiriam 91% da produção. Isso quer também dizer que, no sistema atual, o quinto dia de trabalho ou, talvez, os últimos 20% de trabalho a cada dia são de uma produtividade muito modesta (apenas 9%, em vez de 20% da produção – ou seja, 45% da produtividade que o trabalhador atinge ao começar a semana ou o dia).

Uma produtividade inferior à metade: do ponto de vista dos cálculos, seria até positivo, para a produtividade, reduzir as horas ou dias de trabalho. Significa que a produtividade chega a um pico bem antes das 8 horas diárias ou dos cinco dias úteis, passando depois a declinar. Daí, é lógico que se possa reduzir a jornada laboral – ou trocar um dia na juventude por outro na velhice, ainda assegurando ao aposentado uma remuneração ou vantagem adicional – sem prejuízo e com ganhos.

***

Até aqui, a exposição foi rigorosamente moderna, até mesmo se embasando em dados numéricos, quantitativos. Há nela uma lógica que atende bem à produção. Há nela um planejamento. Mas agora vem a questão que talvez seja a pós-moderna. Radicalizemos a proposta de René Dumont e procuremos recalculá-la.

Quantificamos a proposta de Dumont: três vezes por semana, 6 horas por dia, 15 anos de vida, somam um pouco menos que 13.000 horas ao longo de uma vida. Podemos até elevar essa quantidade e arbitrar um total de 26.000 horas, levando em conta a expansão ocorrida e por vir da expectativa de vida. Ou podemos dizer que, nos trinta anos que se passaram desde a proposta de Dumont, houve ganhos de produtividade tão elevados que poderíamos manter ou mesmo abaixar as 13 mil horas iniciais. Isso importa pouco. O que interessa é imaginar que haja um estoque de horas de trabalho que a pessoa possa cumprir, ao longo da sua vida. Isto, ainda, é muito moderno. O que pode ser mais moderno do que conceber um estoque de horas de trabalho, devidamente quantificado, para que uma pessoa possa fazer jus a certas prestações sociais, à aposentadoria ou a pensões? Mas é aqui que começamos a sair da modernidade.

Suponhamos então que, em vez de ser esse estoque cumprido de uma estirada só, como sugeria Dumont, dos 25 aos 40 anos, ele seja cumprido como e quando a pessoa quiser. Se ela quiser trabalhar intensamente dois meses por ano, ou trabalhar três anos e depois parar alguns outros, tudo isso seria possível. Por que não? É perfeitamente factível. Pode inclusive trabalhar parte num país, parte em outro, se houver esquemas de informática bem azeitados e acordos a respeito. Notem que os meios são modernos, mas a conclusão passa a não ser moderna. Pois o que esta idéia implica? Implica que a identidade deixa de se basear na profissão.

Um dos pontos fundamentais de nossa identidade está ligado hoje a fundar-se na profissão ou no estudo. As pessoas a quem se pergunta “O que você é?” (ou “O que você faz?”) respondem de imediato o que estudam, que profissão têm, e pouca coisa mais. Ora, podemos mudar de registro. Aliás, acredito que talvez o mais interessante, e possivelmente inconsciente, na sugestão de Dumont tenha sido a idéia de três dias de trabalho – porque, com três dias, a maior parte do tempo passa a ser composta de dias de não trabalho.

Esta é uma reversão altamente significativa: significa que alguém não se definirá mais pelo que faz nas suas 18 horas semanais de trabalho, uma vez que as outras 150 horas passarão a ser mais importantes. (Não é a mesma coisa que ter 8 horas de trabalho, o intervalo de almoço, o tempo de transporte, o que acaba deixando o lazer noturno como residual e os dias preenchidos pelo emprego.) A identidade mudaria de eixo, o que suscita outras questões. Suponhamos então que a identidade de uma pessoa ao longo da vida também mude radicalmente. Alguém pode mudar de profissão, pode mudar de estado civil várias vezes. Pode se casar e separar sem que nada disso represente, necessariamente, um fracasso. As pessoas podem mudar sua vida sentindo que cada mudança representa, simplesmente, uma mudança.

Pensemos nessa curiosa entidade política que é a União Européia, que permite às pessoas viver onde quiserem, trabalhar onde quiserem, mas que mantém ao mesmo tempo línguas e culturas muito diferentes entre si. Qual o problema de uma pessoa ser 20 anos francesa, 15 anos italiana ou 30 anos sueca? Nenhum. E é algo que pode vir a acontecer em escala crescente – melhor, que já está acontecendo. Cada vez há mais condutas desse tipo, cada vez mais o mundo pensa deste modo. Na verdade, esta é a parte pós-moderna de nossa utopia justamente em função da crise da idéia de identidade ou da aposta rica na idéia da identidade como algo que se joga, se constrói, se modifica ou se altera.

Esta construção de estados sucessivos e alterados de identidade pode cessar de ser exceção para se tornar uma possibilidade presente, mais perto do que o horizonte. O que, disso, se retira de conclusão, como exercício de utopia? Note-se que uma das leituras recentes da Utopia de Morus é que ela seria um exercício de estilo. Ele teria feito um exercício, como os humanistas gostavam de fazer. Seria algo mais que uma grande brincadeira, mas não muito. Pessoalmente, discordo dessa tese, pela simples razão de que, mesmo que Morus tenha proposto a utopia inaugural como um jogo, ela foi lida a sério. Ainda é lida a sério. Se não foi séria na escrita, tornou-se tal na leitura. Mas suponhamos que o que expusemos acima tenha sido um exercício também, utópico no sentido do inviável. Contudo, com isso teremos, pelo menos, apontado alguns elementos importantes para a consideração da pós-modernidade.

O primeiro é que pós-modernidade não é um conceito unívoco. Aliás, talvez nem seja um conceito, mas não é isso o que aqui importa. O relevante é que não seja um monobloco, que só poderia ser entendido de uma única forma. Nessa sensibilidade pós-moderna, sublinhei um ponto que, a meu ver, é crucial para a crise da identidade. Talvez o termo “crise” não seja o mais feliz, porque dá a impressão de que existia algo melhor, que a certa altura passa por problemas que não deveria padecer. De todo modo, o que se coloca é uma nova forma de lidar com a identidade, mais lábil, mais mutável – mas, sobretudo, menos fincada na profissão. Em vez de nos apresentarmos como professor ou como engenheiro, e de termos como ideal implícito a performance nessa profissão, talvez as pessoas se apresentem pelo hobby, pelo lazer: toco flauta, faço jogging e ainda por cima faço tudo isso muito mal, sem maior qualidade, apenas porque me dá prazer. E é esse mau desempenho nas inúmeras horas livres o que me entusiasma, acrescentaria meu hipotético personagem. Com isso, libertamos também a idéia de identidade do nível de desempenho. A nossa identidade está muito ligada a uma alta idéia de qualidade de performance. Separaríamos a identidade da produção e também da qualidade.

Acrescento um ponto. Cerca de dez anos atrás, comentei com um amigo, que na época era ministro e defendia os cálculos atuariais para expandir os anos de trabalho, por que teria – coincidindo com a queda do muro de Berlim – desaparecido o discurso da redução das horas de trabalho. Disse-lhe que achava essa operação prestidigitatória um caso exemplar de jogo ideológico, em que se oculta o processo pelo qual um projeto de mundo é descartado em favor de outro. Ele, porém, sem entrar nesta parte de meu argumento, reagiu dizendo, simplesmente: doze horas de trabalho diário eram demais, dez também, mas oito é razoável. Eu não quis discutir este ponto; poderia ter-lhe dito que no Brasil é comum somarem-se, às horas diárias de trabalho, três ou quatro de condução, o que está longe de ser razoável; mas me interessou mais notar que, de sua resposta, transpareciam alguns pressupostos: que a ocupação da maior parte do tempo pela profissão era algo altamente positivo, talvez necessário; que possivelmente a questão se joga aí, isto é, não em torno da produtividade, mas da identidade.

Talvez o capitalismo que hoje existe – ou a estrutura de poder, quem sabe mais complexa, de que ele faz parte – esteja menos preocupado com aumentar a produção do que com assegurar as identidades. Aumentar a produção e também o consumo se faria bem, com a redução do horário de trabalho, para retomarmos a sugestão de Semler. Uma redução da jornada também permitiria empregar mais gente e resolver o problema do desemprego estrutural, numa sociedade em que aos empregados se diz que trabalhem mais anos e aos desempregados que sentimos muito por eles. Permitiria resolver em conjunto estas duas questões que, separadas, são insolúveis.

Mas, se o controle social for garantido mediante identidades bem marcadas e das quais é difícil escapar, a questão é outra. Deixa de ser o lucro. Passa a ser a segurança, entendida em sua acepção mais reativa. Não é a ambição de ganhar mais. É o receio de se perder o controle. Talvez isso caracterize o cerne do sistema em que vivemos. É possível que, apesar do hedonismo [4] aparente de nosso tempo, haja no sistema uma pulsão de temor muito forte em relação à instabilidade das identidades.

***

Nosso ponto era esse: mostrar como a pós-modernidade, seja ela uma sensibilidade ou um conceito, pode contestar o projeto moderno da identidade; e mostrar também como é possível imbricar a tal ponto pós-moderno e moderno que um deles sustente o outro. O pós-moderno pode assim estar implicado no moderno. Pode aparecer dentro ou a partir dele.

Finalmente, o pós-moderno, apesar de todo o tom cético de que é investido, em função do qual com freqüência ele é suposto estar à direita, pode perfeitamente figurar num projeto de esquerda. Por isso me permito concluir, fazendo referência a Marx. É claro que há vários Marx. Há um Marx da idade madura, que trabalha basicamente sobre a idéia de identidade forte, tão forte que se chega a ter um sujeito da história, que é idealmente – em nosso tempo – o proletariado. Mas, se em vez de realçarmos esse Marx maduro e intensamente moderno, lembrarmos o Marx jovem, como o dos Manuscritos de 1844, mas também da Ideologia alemã, como esquecer deste último livro a passagem notável em que ele afirma que, na sociedade comunista, na sociedade que tiver abolido a exploração do homem pelo homem, alguém poderá pescar sem ser com isso pescador, poderá pintar ou tocar música sem com isso ser pintor ou músico? É em larga medida o que procuramos dizer aqui. Em outras palavras, as ações, o fazer de uma pessoa, não estarão na dependência da profissão. É possível, assim, tomar um autor tão relevante para a esquerda como Marx e efetuar este recorte. Onde está o Marx fortemente identitário, dos modernos? Porque talvez o Marx mais interessante seja esse, jovem e pós-moderno, que propõe uma ruptura da identidade.



[1] Provavelmente essa mudança de leitura se data da “Nota sobre Maquiavel”, que Merleau-Ponty escreveu em 1957 e se encontra em seu livro Signes (trad. bras., Signos, São Paulo: Martins Fontes, 1991). Numa outra linha, também Isaiah Berlin rompe com a representação tradicional de Maquiavel – ver sua “Introdução a Machiavelli”, que serve de prefácio à edição d’O príncipe pela Ediouro (São Paulo).

[2] Utilizei o conceito de “aberturas” para a modernidade desde A sociedade contra o social, São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Na ocasião, pensei em duas aberturas para a modernidade, as de Maquiavel e de Mandeville. O conceito de “abertura”, inspirado no xadrez, pretende ver de que maneira se dão os lances que iniciam uma época do mundo, entendida como um jogo que articula significações e práticas. A “abertura” assim passa a ser uma inauguração, mas não planejada, simplesmente executada. Seria como o corte no nó górdio que trava uma nova compreensão e ação sobre a sociedade.

A abertura Maquiavel rompe com a visão religiosa (leia-se: cristã) e moral da política que caracterizou a Idade Média mas constrói, contra ela, uma primazia da ação sempre incerta do príncipe. Os súditos continuam sujeitos ao receituário medieval. É o príncipe que não pode, por ele, pautar-se. O que está em jogo é uma emancipação da ação criativa, mas sempre arriscada. Já a abertura Mandeville se dá, não no plano do príncipe, mas no da sociedade, e não mediante a ação, mas por meio de instituições que a canalizem, de modo que vícios privados gerem benefícios públicos. Os dois autores têm em comum quebrar a condenação do mal, que caracteriza o discurso medieval da política, e ver nele uma positividade; mas diferenciam-se, e muito, sobre quem, agindo mal, traz bons resultados (o príncipe, para um; o que poderíamos chamar o mercado, para o outro).

Uma abertura Morus deve ser somada às demais. Sua principal diferença é que, longe de rever a condenação medieval ao mal, ela proclama um bem superior. Tudo, na Utopia, recende a bem. Daí, aliás, que alguns comentadores vejam Morus como medievalizante mesmo na Utopia: condena a propriedade privada – que, afinal de contas, é mais burguesa que feudal – e pensa uma política que seja moral. Contudo, a ler-se com atenção, o que Morus condena é a propriedade que exclui o outro, o que vale também para os direitos que os senhores feudais têm sobre a terra. E o decisivo no conceito de abertura não é como o autor se vê (afinal, Maquiavel não pensava estar sugerindo novas formas de ação para o príncipe, mas apenas explicitando como os governantes bem sucedidos sempre, desde a Antiguidade, tinham agido), e sim o efeito, a recepção, a leitura – e, sobretudo, a reescritura do mundo que se dá a partir do lance de dados fecundo com que abrem uma nova perspectiva social.

[3] Como ela narra em La force des choses (1963).

[4] “Hedonismo”, para mim, não tem conotação negativa alguma.

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